A História como Campo de Batalha:
Reflexões sobre a Reinterpretação
do Passado
Furedi critica a revisão histórica ideológica que apaga figuras e eventos do passado, prejudicando a compreensão crítica da história. Ele propõe uma abordagem equilibrada que preserve a memória histórica e permita aprender com suas lições, evitando simplificações e distorções.
Edmar Ribeiro, Nov/2024
Em 1969, Sir John Plumb publicou um livro intitulado A Morte do Passado, no qual refletia sobre o impacto do tempo na interpretação histórica. Plumb, biógrafo de Robert Walpole e figura de destaque da Universidade de Cambridge, foi um dos primeiros intelectuais a introduzir conceitos inovadores sobre história, abordando a temporalidade e os novos paradigmas que emergiam na sociedade. Ao falar sobre o desvanecimento das narrativas passadas, ele sugeria que o passado já não exerceu a mesma relevância no pensamento moderno. Contudo, a proposta de Plumb, embora avançada para sua época, carrega limitações. Hoje, a interpretação da história não apenas está em transformação, mas se tornou um campo de batalha ideológico.
Essa reinterpretação constante do passado, que Plumb sugeria como inevitável, encontra novos contornos nas análises contemporâneas, em especial nas de Frank Furedi, sociólogo britânico que observa uma abordagem mais agressiva contra a preservação da memória histórica. Em seu livro A Guerra Contra o Passado, Furedi argumenta que o passado não é apenas uma abstração que se desvanece com o tempo, mas que está sendo ativamente apagado. Em sua visão, o legado histórico da civilização ocidental foi transformado em um campo de batalha, no qual diferentes forças sociais e culturais buscam reescrever ou destruir os símbolos e os eventos históricos que não se alinham com os valores contemporâneos.
Furedi descreve a reinterpretação da história como uma “guerra não declarada contra o passado”, na qual as figuras históricas e os marcos culturais são frequentemente alvo de ataques. Ele aponta que esta "guerra" não se limita à destruição física, como as derrubadas de estátuas, mas envolve também uma desvalorização moral e simbólica. Como exemplo desse fenômeno, Furedi menciona o caso da derrubada da estátua de Abraham Lincoln em Portland, Oregon, durante o “Dia Indígena de Fúria” em 2020. A derrubada de uma figura histórica, cuja liderança durante a Guerra Civil dos Estados Unidos foi fundamental para a abolição da escravatura, exemplifica como figuras passadas são reavaliadas por prismas contemporâneos, muitas vezes sem considerar as complexidades de seus tempos.
O fenômeno da reinterpretação do passado vai além dos simples atos de destruição simbólica, como a queima de livros ou a remoção de estátuas. Furedi aponta uma tendência mais abrangente: a reescrita da história nas escolas e universidades. Em muitas instituições acadêmicas, o foco tem sido deslocado para os aspectos negativos da história, muitas vezes ignorando o contexto mais amplo em que esses eventos ocorreram. Isso resulta em uma abordagem simplista e polarizada, onde o passado é abordado mais como uma lição moral de erros a serem condenados do que como uma oportunidade de reflexão e aprendizado.
O que Furedi critica profundamente é o modo como muitas dessas revisões históricas são conduzidas sob a égide de um projeto de justiça social, que visa reinterpretar os erros passados à luz das questões contemporâneas de identidade, raça, e gênero. Ele argumenta que tal abordagem revisionista não só distorce o passado, mas também cria uma separação entre as novas gerações e suas raízes culturais. Essa desconexão torna difícil para as sociedades compreenderem as complexas realidades históricas e, por conseguinte, suas próprias identidades.
As figuras históricas não escapam dessa revisão implacável. Nomes como Winston Churchill, Thomas Jefferson e outros líderes que desempenharam papéis centrais na formação das nações ocidentais são frequentemente atacados por suas ações e atitudes que não correspondem aos padrões morais de hoje. Churchill, por exemplo, é frequentemente criticado por seu papel no colonialismo britânico, apesar de ser uma figura chave na luta contra o nazismo. Furedi vê essas críticas como simplistas, muitas vezes descontextualizadas, que não consideram as circunstâncias em que tais figuras viveram e as pressões de suas épocas.
O revisionismo histórico também se reflete nas artes e nas literaturas que antes eram vistas como pilares culturais, mas que agora estão sendo questionadas ou até excluídas. Obras de autores como Shakespeare, Mark Twain e outros são frequentemente descartadas dos currículos educacionais por conterem elementos considerados “problemáticos” à luz das questões atuais. Para Furedi, esse fenômeno é uma forma de censura que não busca promover o debate ou a reflexão, mas eliminar qualquer desconforto que essas obras possam causar no presente, mesmo que este desconforto seja uma oportunidade para discussões mais profundas sobre as complexidades do passado.
Mas a reinterpretação do passado não se restringe à esfera cultural ou acadêmica. A política contemporânea também tem sido fortemente influenciada por essa tendência revisionista. A crescente ênfase nas identidades segmentadas – seja por raça, gênero ou classe social – tem levado a uma revisão da história que ignora os princípios universais de justiça e meritocracia. Furedi argumenta que, ao focar excessivamente nas divisões identitárias, a sociedade perde de vista o que nos une enquanto seres humanos e, muitas vezes, constrói narrativas simplistas que desconsideram a complexidade das interações humanas ao longo da história.
Outro aspecto importante dessa revisão histórica está na maneira como as sociedades lidam com suas memórias coletivas. A remoção de estátuas de figuras históricas como Robert E. Lee, nos Estados Unidos, ou Cecil Rhodes, no Reino Unido, é justificada por muitos como uma forma de corrigir erros do passado. Contudo, Furedi vê essas ações como uma tentativa de apagar os vestígios de um passado que, por mais problemático que seja, deve ser compreendido e analisado em sua totalidade, e não eliminado para que a história se torne mais palatável ao presente.
A simplificação da história, segundo Furedi, resulta em uma redução da capacidade das sociedades de aprender com seus erros. Quando partes do passado são apagadas ou distorcidas, há o risco de que os mesmos erros sejam repetidos, pois não há um entendimento genuíno de suas origens. Furedi alerta para o perigo de uma geração que, ao ignorar as lições do passado, acaba sendo condenada a cometer os mesmos equívocos.
Ainda mais controverso é o movimento de “descolonização” que visa reescrever currículos acadêmicos e reimaginar a história por meio de uma única narrativa de opressão. Embora a intenção por trás desse movimento seja legítima, no sentido de combater a exploração histórica, Furedi aponta que ele ignora contribuições importantes de várias culturas e povos ao longo da história. Ao se concentrar exclusivamente nas perspectivas de vítimas da opressão, perde-se a oportunidade de entender como diferentes culturas interagiram, colaboraram e até se beneficiaram mutuamente ao longo do tempo.
Furedi propõe uma alternativa para essa guerra contra o passado: uma abordagem mais equilibrada e contextualizada da história. Em vez de demonizar ou apagar figuras e eventos do passado, ele sugere que devemos buscar compreender as motivações, as circunstâncias e os contextos que moldaram as ações dos indivíduos e das sociedades. Esse processo de compreensão, segundo ele, é fundamental para uma reflexão crítica que possa nos ensinar com mais profundidade.
O sociólogo também defende a preservação da memória histórica, que deve ser reconhecida em sua complexidade. Para Furedi, a história não é apenas uma sucessão de eventos, mas um emaranhado de experiências humanas, onde se misturam as virtudes e os vícios, as vitórias e as derrotas. Ao invés de eliminar ou distorcer a memória, devemos tentar entendê-la em sua totalidade, o que nos permitirá construir uma visão mais rica e precisa do passado.
Em última análise, Furedi argumenta que, para que possamos avançar enquanto sociedade, precisamos parar de ver a história como um campo de batalha ideológico. O passado deve ser tratado com respeito e inteligência, reconhecendo suas falhas, mas também suas contribuições. Só assim poderemos aprender com ele e construir um futuro mais justo, equilibrado e verdadeiramente pluralista.
A luta pelo passado, segundo Furedi, deve ser uma luta pela compreensão e pela educação, não pela destruição. Ele conclui que, se conseguirmos reconciliar as lições do passado com os desafios do presente, seremos capazes de criar uma sociedade mais consciente de sua história e mais preparada para os desafios do futuro.